quinta-feira, setembro 07, 2006

Gilles Lipovetsky


"Se o Sexo É Livre, Porque É Que a Sociedade Não É Promíscua" Por ANDRÉIA AZEVEDO SOARESDomingo, 12 de Maio de 2002

ENTREVISTA COM GILLES LIPOVETSKY
O autor de "A Era do Vazio" esteve ontem no Porto para apresentar uma conferência sobre a sedução na era pós-moderna. Nesta conversa com o PÚBLICO, explica como o individualismo contemporâneo afecta o amor, o sexo e a política.

"A Era do Vazio" é talvez o seu livro mais conhecido. Nele, o filósofo francês Gilles Lipovetsky assinala a existência de um processo de personalização, capaz de tornar as sociedades pós-modernas apáticas e preocupadas com o próprio bem-estar.

Assim, as pessoas tenderiam a fazer as suas escolhas sem investir no espaço público, bem como a abraçar posturas hedonistas ou narcisistas.
Nesta entrevista, no entanto, o autor explica que o individualismo não provoca necessariamente o caos.

O amor continua a existir, o que muda é a quantidade de relacionamentos que encetamos para encontrá-lo fugazmente.
A liberdade sexual é total, mas poucos promovem orgias. O eleitor torna-se imprevisível, mas a democracia, como se viu na França, "não está ameaçada".
O próprio turbilhão gerado pelo individualismo contemporâneo reorganiza uma estabilidade social. É um "caos organizador", como explicou Lipovetsky.
O professor da Universidade de Grenoble esteve ontem no Porto para apresentar a conferência "O Amor e a Sedução na Era Pós-Moderna", no âmbito de um encontro promovido pela Sociedade Portuguesa de Psicanálise na Fundação Cupertino Miranda.

PÚBLICO - Escreveu que, na era pós-moderna, "a sedução já não é libertina". O amor, tal como o conhecemos hoje, vive fora da sedução?
GILLES LIPOVETSKY - Há na sociedade pós-moderna um conjunto de fenómenos que se opõem fortemente à lógica da sedução. A pornografia, por exemplo, é a anti-sedução. As coisas agora são muito rápidas, já não há aquele teatro do amor cortês. E isso acontece porque hoje valorizamos a verdade do desejo, a autenticidade. A segunda questão advém da liberalização sexual dos anos 70.

A pílula anticoncepcional?
Sim. E o fim do julgamento da conduta sexual das mulheres. A virgindade deixou de ser um valor. As feministas proclamavam que o ritual da sedução era então igualitário. Mas a verdade é que não houve essa partilha do papel do sedutor. A lógica individualista proporcionou a autonomia no interior dos casais. Mas o amor continua a existir. Refuto a ideia de que o individualismo faz o amor morrer. E a sedução não se coaduna com essa lógica da autonomia. A iniciativa, o avanço sexual continua a ser largamente uma prerrogativa masculina. Há sempre quem diga que agora a mulher também promove a aproximação, mas isso é mais um discurso feminista do que a realidade. As mulheres adoram ser cortejadas e esperam por isso. O grande paradoxo é que o princípio da autonomia foi reconhecido nos casais, mas o papel da sedução permaneceu não-permutável.

O indivíduo pós-moderno vive voltado para si próprio, mas também deseja um relacionamento afectivo com o outro?
Sim. O sentimento não desapareceu. Ao contrário do que se pode pensar, o individualismo não aboliu o relacionamento. Repare nas canções de Céline Dion. Elas não falam senão de amor. O que muda é a possibilidade de recomeçar a vida amorosa. Continuamos marcados pelo ideal do amor trovador. Queremos uma relação forte, um amor arrebatador, mas não para toda vida - e aí está a diferença.

Mas o facto de termos avançado para um novo conceito de relação, que à partida sabemos que será finita, e, ao mesmo tempo, de idealizarmos um amor arrebatador não nos provoca uma angústia de algo inatingível?
O amor é que é impossível. Não pode haver um amor feliz, pois assim seria uma paixão forte - e, como tal, seria trágica. Estamos felizes durante um período.
Quando as coisas ficam estáveis, um dos dois começa a sofrer. Mas não é a condição pós-moderna que provoca essa angústia. O amor seria o contrário do individualismo, uma vez que se vive para o outro. Mas, por outro lado, não há amor sem individualismo, pois uma relação pressupõe a escolha de alguém. O amor implica reconhecimento da autonomia dos sentimentos. Queremos casar com aquele que amamos.
Depois vem o divórcio.
O casal pós-moderno faz tentativas. Nós agora temos mais vidas amorosas. Recomeçam sucessivamente.

Há actualmente uma vaga de livros autobiográficos que tornam pública a conduta erótica da mulher - "A Vida Sexual de Catherine M.", por exemplo. Como vê esse desejo feminino de registar a própria sexualidade? Isso é um fenómeno coerente com a lógica individualista. Hoje as mulheres escrevem literatura erótica na primeira pessoa e até fazem filmes pornográficos. E é interessante que essa voz narrativa seja feminina. Antes, o discurso erótico era dominado pelos homens. Sade, por exemplo. Catherine Millet fala menos dos seus sentimentos e mais das suas peripécias sexuais. Isso não deve ser visto como um sinal do regresso da promiscuidade. A autora conta o que fez há vinte anos, quando não se pensava na sida. A fama do livro veio justamente do facto daquela história nada ter a ver com o que acontece hoje. E as pessoas indagam-se por que não sentem vontade de fazê-lo numa altura de total permissividade. Se a sexualidade agora é livre, porque é que a sociedade não é promíscua? A resposta está no facto de o homem individualista se querer sentir valorizado por uma pessoa que ele próprio escolheu. Isso conduz à afirmação do sujeito, ao passo que a orgia é precisamente a negação do indivíduo. E a cultura individualista que temos não combina com essa desvalorização do indivíduo.

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